Porque "História de um casamento" é um dos melhores filmes que eu já vi

Julia Drummond
4 min readDec 5, 2020

--

Aqui estou eu me debulhando em lágrimas depois de re-assistir àquela cena final de "História de um casamento" em que Charlie, o personagem de Adam Driver, lê a carta escrita por Nicole, brilhantemente interpretada por Scarlett Johansson, sobre o amor que ela sente por ele no fim da relação de 10 anos.

Se você assistiu a esse filme e ficou se perguntando "por que, afinal, eles se divorciaram?", ou "será que Nora, a advogada — que rendeu à atriz um Oscar de melhor coadjuvante — não foi dura demais?", vem comigo.

É a segunda vez que eu assisto a esse filme e ele só ficou melhor na minha cabeça. Sim, sou uma entusiasta, mas muito provavelmente é carência de histórias de amor não tradicionais. Vou tentar resumir.

Uma das belezas do filme é que ele humaniza o término. Relacionamentos afetivo-sexuais são envoltos de mitos e complexidades em sociedades que valorizam o matrimônio cristão e tudo o que vem junto: monogamia e maternidade compulsória são apenas exemplos. Portanto o fim é como se fosse um fracasso. Mas no filme o fim, além de importante, revela conflitos silenciosos, mas extremamente relevantes.

Falando em conflitos, falemos do processo de divórcio. Eu me lembro de pensar, na primeira vez em que vi o filme, que a tentativa de ausência de conflito era importante e madura. Mas às vezes o embate não apenas é inevitável como essencial.

Sabe aquela frase "paz sem voz não é paz, é medo"?. É, no filme, sobre o silêncio imposto sobre Nicole durante 10 anos de casamento.

E aí você pensa "nossa, mas precisava daquela baixaria na audiência?". E eu te respondo: depende rs.

Observem a tranquilidade de Charlie em tentar um divórcio amigável enquanto Nicole concordou com ele. No momento em que ela se impôs e pôde dizer o que pensa, com a ajuda da advogada Nora, Charlie surtou e saiu dando soquinho na parede.

Isso faz dele uma pessoa "ruim"? Não necessariamente. E o fato de ele ter aceitado que nem tudo deve ser do jeito dele é um começo. Isso quer dizer, na verdade, que a violência psicológica decorrente de anos de silenciamento e literalmente gaslighting vieram à tona com o divórcio. E que ele — e ela — tiveram que lidar com isso.

Quando uma amiga nossa nos procura dizendo que está passando por um relacionamento abusivo, a nossa primeira reação é dizer "termina, mulher, pelo amor de Deus". O que a nossa realidade enquanto mulheres feministas por vezes esconde é que, e a gente sabe, as pessoas são complexas. Maniqueísmos não funcionam quando a gente está desesperada tentando tirar a nossa amiga, ou nós mesmas, do buraco.

Acredito que um passo importante na luta contra os abusos em relacionamentos, advindos da cultura patriarcal que silencia e violenta as mulheres, é enxergar essas complexidades. Porque o mesmo homem que ama ser pai e é um excelente profissional pode se recusar a te ouvir. E, nesse momento, o empoderamento surge quando entendemos os nossos limites e o que não estamos dispostas a abrir mão. E, pra isso, precisamos nos conhecer.

É óbvio que a realidade é muito mais complexa do que isso. É muito fácil, do alto dos meus 28 anos e me bancando sozinha eu vir aqui falar em "autoconhecimento". Mas eu acredito que compartilhar a minha experiência e a minha visão pode ajudar a revelar outras perspectivas para além da jovem que precisa se casar ou simplesmente estar em um relacionamento para não se sentir um lixo.

Porque "independência feminina" ainda é um mito numa sociedade que ama as princesas da Disney e que bate palma pra cortar cabelo de "talarica". E porque, obviamente, a violência não é culpa de quem a sofre, e nós, mulheres, somos colocadas na posição de consertar os homens, de "fazê-los crescer", como se fôssemos uma espécie de terapia (rehab). E, nessa lógica, pensar em nós mesmas é egoísmo.

Antes de chegar num extremo da violência, passamos por diversas fases, e uma delas é esquecer quem somos, do que gostamos, de quem gostamos. E tudo vira sobre a outra pessoa, já que alguém disse por aí que isso é "se jogar de cabeça no amor".

Às vezes eu simplesmente me permito sonhar com visões mais bonitas sobre as relações. É difícil sonhar num país em que homens se sentem no direito de matar as mulheres que decidem se divorciar, como a Nicole fez. Mas se a gente não construir a nossa utopia, se a gente não se permitir, como poderemos nos imaginar lá?

Eu sinceramente quero exaltar términos em que as pessoas consigam se lembrar dos motivos pelos quais começaram a se relacionar, sem se esquecer de porquê estão terminando e reconhecer que o relacionamento foi, na verdade, um grande sucesso. E o sucesso se deve a entender a hora de começar e a hora de parar.

Me permitam sonhar, por favor.

--

--

Julia Drummond

Feminista, negra, advogada, mestre em Direitos Humanos pela USP. Gosto um pouco de scifi, dar pitaco em séries, aulas de dança de clipe e vídeos de gatinhos.