Pequenas tensões na porra toda

Julia Drummond
7 min readJun 27, 2020

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Uma tentativa de resenha

Eu não ia escrever sobre "Little Fires Everywhere" (LFE para os íntimos) e por dois motivos: porque eu ainda não li o livro que a inspirou e porque tem tanta coisa pra falar que eu nem sei por onde começar.

Mas resolvi começar pela minha impressão geral. Dessa vez, diferente de outras séries que me encantam ou marcam e eu saio escrevendo sem buscar muitas informações antes, eu fiz uma pequena pesquisa no youtube, pra entender a produção, o elenco e a impressão que as pessoas tiveram sobre a série.

Ela é uma parceria entre a Reese Witherspoon (Legalmente Loira) e a Kerry Washington (Scandal), além de outras pessoas, incluindo a autora do livro, Celeste Ng.

A primeira coisa que eu preciso falar é que a série é tensa.

Cada episódio dura quase 1 hora e não existe nada de suave na história. A impressão que dá é que vai dar merda a qualquer momento, toda hora. Os 3 primeiros episódios me deixaram extremamente desconfortável, ao ponto de eu ter que pausar várias vezes e em alguns momentos desistir e continuar no dia seguinte.

Eu vi uma youtuber comentando que era uma série gostosa de assistir.

G O S T O S A

Eu vou tentar explicar o meu incômodo.

As expressões faciais da Mia Warren, interpretada pela Kerry, fazem você pensar que o tempo todo ela tá insatisfeita com alguma coisa. E você tem vontade de bater na cara da Elena toda vez que ela aparece. Porém a série não é tão preto no branco (haha). Ela faz você criar empatia por todos os personagens, ainda que você se identifique mais com um ou outro.

O tempo todo eu torci pela Mia e pela Pearl, porque eu fiquei com medo de o incêndio na casa da Elena ser colocado nas costas delas (o incêndio aparece no começo da série). Só que nos primeiros episódios eu tava tentando entender o que a Mia tava tentando fazer ao aceitar o trabalho na casa da Elena como "governanta" ou "gerente" (risos), e cheguei até a pensar que ela poderia estar "planejando" algo contra ela por algum motivo que o espectador ainda desconhecia.

Aí eu pensei "cara, olha isso, eu tô pensando como a Elena".

Me veio à mente o que será que as pessoas brancas estariam pensando ao assistir essa série. Será que seria como as madames que viram "Que horas ela volta?" e acharam a Jéssica uma folgada, ou como a esquerda Santa Cecilier que assistiu Bacurau, um filme 100% zueira com o paulistano médio, e amou (eu incluída ahaha)?

Daí me lembrei do que a minha psicóloga me disse há um tempo atrás quando eu disse que tinha medo de estar agindo como um homem branco, no sentido de olhar pra mim sem pensar nos demais porque eu não preciso nem vou ser responsabilizada por isso, e ela disse que eu não sou um homem branco.

Meu ponto é: a série levanta questões raciais e de gênero sem ser óbvia nem didática. Os personagens são complexos, a atuação do elenco é impecável e o final me surpreendeu.

Nesse sentido, eu já acho LFE diferente de "Ela quer tudo", por exemplo, em que o Spike Lee faz os personagens olharem pra câmera pra contar como se sentem. Essa é uma escolha audiovisual que me incomoda porque é quase como se estivéssemos tentando convencer o espectador pela explicação e não pelo sentimento.

A graça dessa série é fazer você sentir raiva e pena da Elena, vontade de abraçar a Izzy enquanto quer sacudi-la e fazê-la entender que ela tá tão envolvida na teia de privilégios quanto a mãe.

Um ponto que me tocou em particular foi a relação da Pearl com o Moody, o Trip e a Lexie (falei que é muita coisa pra falar).

No começo, eu achava que ela ia se apaixonar pelo Moody e ele ia ser um cuzão. Mas aí ela se interessou pelo Trip e eu fiquei nervosa, porque pela minha experiência de vida adolescente, é nessa hora que você se fode. Se apaixonar pelo menino bonito da escola (leia-se branco e padrão) e de fato dar em cima dele é o ato mor de ousadia pra uma menina negra, na minha concepção (e ninguém é obrigado a concordar comigo, que fique claro).

Porém ela foi lá, se jogou na paixão e ficou com o boy. Mas aí não só eles namoraram escondido porque o Moody não ia lidar com o fato de que num é porque ele tem noções básicas de decência que a Pearl tinha que ficar com ele, como, a princípio, eu achei que o Trip tava tratando ela bem, de um jeito fofo. Só que eu percebi que mentir pro Moody também era uma forma de não ter que assumir o relacionamento publicamente.

Esse ponto não é abordado na história, mas eu fiquei com isso na cabeça. Porque assim, beleza, o Trip foi um bom amigo pra Pearl e inclusive trouxe elementos da relação dela com a mãe que ela não tinha percebido. Mas ele não assumiu o namoro e eu pensei em como as coisas que nos ferem podem ser sutis e controversas.

É dizer, o exercício de privilégios pode não fazer de alguém um monstro, mas não deixa de machucar. E é por isso que eu achei tão foda quando a Pearl decidiu terminar com o Trip. Ela viveu o romance na casa de boneca em que ela sonhou estar até se tocar que aquela casa não era dela e que ela sequer queria aquela casa.

E a Lexie… Meu Deus, eu tava rezando pra alguém dar um sacode (uma surra) nela, porque que menina escrota… Só que na hora em que ela chegou na casa da Mia chorando porque tinha feito um abordo, eu queria abraçá-la. E tudo o que a Mia disse pra ela era tudo o que eu queria ter ouvido na minha adolescência e ninguém me contou: que nessa nossa suposta harmonia racial, meninas brancas podem eventualmente nos tratar como a pessoa pra quem elas pedem ajuda, que elas usam, mas sem jamais deixar de ser o centro das atenções.

Cena de "As patricinhas de Bervely Hills"

Essa série é tão profunda que até as entrevistas das atrizes me deixam tensa hahaha. Tipo, eu não consigo desvencilhar o ódio entre as duas na ficção da vida real. Por mais que o ódio entre elas estivesse também ligado aos medos e frustrações que cada uma carregava consigo na própria maternidade, eu sinto que uma pessoa como a Elena jamais poderia oferecer uma amizade sincera pra pessoas negras. Explico.

Amizade pressupõe ver o outro como um semelhante. A primeira coisa que a Elena ofereceu à Mia logo depois de lhe alugar uma casa foi um emprego como doméstica. E nós sabemos a conotação que o emprego doméstico tem em países que viveram a escravidão africana.

Entretanto, a Elena teve de encarar as próprias frustrações quando os seus filhos puseram fogo na própria casa. Ela tentou ser a mãe perfeita, até mesmo contra a vontade, e viu o plano de perfeição queimar na sua frente.

Eu não ia escrever porque não tenho uma conclusão ainda. Eu não sei se acredito numa possível redenção das Elenas da vida. E, aparentemente, a série é sobre maternidade, mas, pra mim, é muito mais. É sobre as feridas abertas do racismo e de como uma cidade feita para integrar negros e brancos precisou pagar seus moradores brancos para que eles convivessem com as pessoas negras. É sobre como o feminismo ainda precisa evoluir e sobre como a raiz das tensões entre os personagens, incluindo a disputa pela maternidade da May Ling, está no racismo que sustenta o capitalismo que levou Bebe a abandonar a filha faminta.

O brilhantismo dessa série é nos fazer enxergar as bases do racismo estrutural nas relações do cotidiano, sem tentar explicar demais, mas sem silenciar sobre isso.

Eu com certeza recomendo e estou aberta a novas impressões sobre essa obra maravilhosa.

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Julia Drummond

Feminista, negra, advogada, mestre em Direitos Humanos pela USP. Gosto um pouco de scifi, dar pitaco em séries, aulas de dança de clipe e vídeos de gatinhos.