O que eu gostaria que pessoas que fazem compliance de raça soubessem

Julia Drummond
4 min readNov 5, 2019

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Recentemente fui selecionada para uma bolsa integral num curso que queria muito fazer. Era na minha área, mas mesmo trabalhando e ganhando uma renda decente, me deparei com um custo alto demais.

Eis que surge a oferta: escolheremos 3 bolsistas integrais para participar do nosso curso! Mande seu currículo, uma carta de motivação e observaremos critérios de diversidade, como raça e gênero.

Mandei e deixei a vida seguir, até esqueci que tinha feito inscrição.

Eis que, no dia da primeira aula, recebo uma mensagem dizendo que havia sido selecionada, mas que era avisada em cima da hora porque tiveram que fornecer uma bolsa extra, já que tinham levado em consideração critérios de diversidade geográfica (moro no Centro de São Paulo, lugarzinho caro pra cacete).

Até aí tudo bem, pensei, pois isso significaria que eles tinham priorizado pessoas negras periféricas. Certo?

Ledo engano. Ledo, ledo, ledo.

Tive que refazer a minha agenda da semana correndo, mandar mensagem pro chefe explicando a oportunidade, combinando tarefas com as colegas pra não deixar ninguém na mão, rever compromissos e, ufa, fui.

Chegando lá, me deparei com uma moça branca na minha frente se credenciando. Escreveu o nome no crachá mesmo existindo crachás com nome impresso. O dela não estava lá. Na minha vez, quando o rapaz foi procurar o meu nome, também não estava.

"Ah, você é uma das que ficou sabendo hoje, né?". Ué, tinham me dito que a minha bolsa era extra… A moça branca confirmou que ela também só recebeu a notícia hoje.

Entrei na sala e olhei em volta. É aquela olhada em volta que toda pessoa negra dá quando chega em espaços elitizados. Vocês sabem do que eu tô falando.

4 pessoas negras numa turma de 40 pessoas. "Já é alguma coisa", minha colega de trabalho branca e engajada diria.

Apresentação do curso, roda de apresentação. Advogados, advogadas, grandes empresas e marcas. Alunos(as) que reconhecem os professores de outros trabalhos e outros cursos, da mesma universidade onde todes estudaram.

Rodas de apresentação em espaços elitizados e majoritariamente brancos sempre me fazem perguntar se eu deveria destrinchar o meu currículo ou só dizer o básico, ou talvez acrescentar alguma formação mais pertinente para a ocasião. Conto do meu intercâmbio? Falo da minha experiência no setor? Falo que fiz graduação e mestrado na USP ou só o mestrado?

É mais do que síndrome do impostor. É sobre ponderar entre quem eu sou e o que eu quero que as pessoas naquele momento saibam, a mensagem que eu quero passar sobre mim mesma.

Destrinchar o meu currículo pode me fazer soar arrogante — porque qualquer fala que te coloque em pé de igualdade com pessoas brancas te fará soar como tal — mas eu honestamente acho irritante qualquer pessoa que descreve todos os títulos acadêmicos e profissionais num contexto em que aquilo não é relevante.

Um dos maiores privilégios de ser branco(a) é que você passa como normal num grupo de pessoas como você, é só mais um, então você não tem que ficar se provando porque você faz parte daquele lugar.

"Ela deve ser bolsista. Olha a roupa dela, que oportunidade incrível deve ser essa bolsa. Aposto que não fala inglês." Eu não tenho a menor ideia do que as pessoas estavam pensando de mim, mas essas são algumas das coisas que passam pela minha cabeça.

Mas me recuso a me definir pra combater ideias pré concebidas das pessoas. Então falo um pouco do meu trabalho e, do meu currículo, trago apenas o que é pertinente ao curso.

Começam os debates. Perfilamento racial. Bias. Discriminação.

4 pessoas negras na sala.

Sabe aquela ideia de que a diversidade traz outros pontos de vista para o debate, enriquecendo-o?

Como vocês esperam enriquecer o debate colocando 10% de pessoas negras? Tipo, sério?

Vocês já ouviram falar em fragilidade branca e pacto narcísico da branquitude?

Algumas das microagressões que pessoas negras sofrem em ambientes majoritariamente brancos envolvem o representar toda uma raça (como se não houvesse diversidade de pensamento e comportamento, basicamente apenas brancos tem direito à individualidade) e o silêncio sobre raça, porque qualquer debate de raça vindo de pessoas negras seria ideológico, ao contrário de pessoas brancas, que seriam racionais e imparciais.

Vocês tem noção do quão injusto é pedir para que eu e mais 3 gatos pingados carreguemos a missão de trazer a tal da diversidade pro debate?

10% de pessoas negras não ajudam a quebrar o silêncio, apenas causam, de um lado, uma ansiedade tremenda e, do outro, uma imagem bonitinha pra empresa/entidade que paga de desconstruída e cheia de ideias inovadoras no mercado de startups e ONGs.

Querem uma dica, do fundo do coração e, olha só, de graça (eu cobro pra falar pessoalmente, viu): migalha não é ação afirmativa. Ação afirmativa é um percentual decente de "diversidade", e uma educação permanente da equipe, que deve estar disposta lidar com os climões da vida, que vão surgir quando o silêncio do pacto narcísico da branquitude for quebrado.

Tá na moda dizer que não basta seguir a lei, é preciso fazer mais. Fica a dica, amados.

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Julia Drummond

Feminista, negra, advogada, mestre em Direitos Humanos pela USP. Gosto um pouco de scifi, dar pitaco em séries, aulas de dança de clipe e vídeos de gatinhos.