O que a minha trajetória política, profissional e acadêmica tem a ver com a minha tese de doutorado?

Julia Drummond
4 min readMar 7, 2024

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Em 2024 faz 9 anos que 2015 passou. Foi um ano de efervescência política e cultural para as pessoas negras. Foi, na minha visão, o ápice da "geração tombamento", dos grupos feministas de Facebook e dos coletivos universitários.

Em 2015, eu estava recém formada em Direito e decidida a fazer mestrado. Na graduação, havia participado da fundação de um coletivo negro universitário e, graças a esse grupo, pude ler textos que me introduziram à questão racial no Brasil. Neusa Santos Sousa, Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos foram apenas alguns dos autores com quem eu tive contato. Nessa época, lembro que o atual ministro de direitos humanos Silvio de Almeida estava recém titulado em seu doutorado em filosofia do direito na USP, e não era raro encontrá-lo pelos eventos.

Cada um de nós do coletivo escolhia um texto para a semana seguinte, que era discutido em grupo. Eu não me lembro de viver um período com tamanha abertura de mente como esse. É como se eu passasse a ver o mundo de uma forma absoluta e completamente diferente de antes. Eu nunca mais consegui me recuperar dessa experiência, e entrar no mestrado me parecia o único caminho possível.

Eu não sabia muito bem para que servia a vida acadêmica, então descobri enquanto fazia. Eu me lembro de querer respostas para as perguntas que surgiam na internet toda semana, mas aos poucos entendi que a pesquisa leva tempo. Me matriculei em disciplinas sobre feminismo, questões de raça e classe no Brasil, e a história das mulheres no pós-abolição. Na maior parte do tempo, eu sentia que não sabia o que fazer com tanto conhecimento, mas seguia tentando mesmo assim.

Eu pensava que a minha contribuição às lutas nas quais me envolvi seria pela escrita acadêmica. Lembro de ler e participar de discussões sobre o papel da academia para fora da universidade, sobre "academicismos" e afastamentos entre pessoas negras de dentro e de fora da universidade pelo uso rebuscado da linguagem ou pela mobilização de temas que não necessariamente dialogavam com as questões mais urgentes da população negra. E isso me gerava muita angústia, porque, afinal, o que eu estava de fato fazendo ali? Estaria eu contribuindo para questões coletivas ou apenas expiando a minha culpa cristã ao me satisfazer com um título que só servia à minha carreira?

Defender a dissertação de mestrado me trouxe algumas respostas. Não, eu, sozinha, não seria capaz de acabar com opressões interseccionais de que tanto falamos em 2015. Não obstante, permanecer na academia me ajudou a entender como ela funciona e o que eu posso fazer com isso. A minha dissertação vem sendo mobilizada por advogadas que a utilizam como forma de pensar o direito de família na sua atuação com mulheres negras. Eu não acabei com uma opressão, mas eu entendi que aquele coletivo negro que mudou a minha forma de pensar me fez fazer novas perguntas, e essas perguntas são compartilhadas por mulheres como eu: afinal, qual é a relação entre direito de família e mulheres negras num país como o Brasil? Sendo assim, junto com a experiência do coletivo negro na universidade, trabalhar como advogada entre 2015 e 2019 e militar na advocacia me ajudaram a fazer perguntas, e a vida acadêmica me deu ferramentas para buscar respostas ou, ao menos, explicações.

Hoje eu pesquiso as interações de mulheres negras com o sistema de justiça familiar, tentando entender qual é o papel que a intersecção entre raça e gênero pode exercer na busca por uma tutela judicial. Procurando por validação acadêmica, eu sinto que me perdi tentando falar com todos os autores respeitáveis nas áreas em que pesquiso. Se hoje, graças às experiências de disciplinas, grupos de estudos, intercâmbios e congressos eu compreendo melhor os melindres da academia, eu também sinto que me desconectei do propósito inicial. Apesar de estar num núcleo de pesquisa que me mantém vinculada aos estudos de raça e direito, os meus pés no chão vinham lá daquele coletivo de 2015. A resposta para entender porque eu pesquiso o que pesquiso e para quem talvez venha das lembranças das experiências de 2015 e da reabertura para as possibilidades de debates e embates que 2024 tem a oferecer.

Nós nos unimos por diversos propósitos, dentre eles a abertura da universidade para as pessoas negras. Mobilizar novas epistemologias e abrir caminhos para quem vem atrás, resgatando quem já trilhou a pesquisa antes, me parece condizente com a trajetória política que eu escolhi. Sendo bem sincera, é muito difícil se sentir parte de um coletivo quando nos isolamos no homeoffice para realizar tarefas acadêmicas bem específicas. Talvez voltar para o campus e buscar diferentes conexões dentro e fora da universidade façam sentido nessa jornada.

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Julia Drummond

Feminista, negra, advogada, mestre em Direitos Humanos pela USP. Gosto um pouco de scifi, dar pitaco em séries, aulas de dança de clipe e vídeos de gatinhos.