Fazer ou não fazer doutorado: eis a questão

Julia Drummond
4 min readJul 19, 2020

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O ano é 2020. Uma pandemia mundial corre à solta; temos, somente no Brasil, um saldo de mortes na casa dos milhares e um governo federal que lava as mãos e insiste em incentivar o uso de um medicamento inútil. Ficamos um mês sem ministro da educação e ainda estamos sem ministro da saúde.

Eis que surge a pergunta: fazer ou não fazer doutorado?

Você deve estar pensando: "menina, o mundo tá caindo e você preocupada com dilemas acadêmicos?". Sim, estou. E sabe por quê?

Pesquisa é um dos pilares do ensino superior. Junto com a extensão e o ensino, é o que constitui as universidades públicas e algumas poucas privadas. É o que vai nos dar (ou não) a vacina contra o Covid-19. E, nas ciências humanas, é o que nos faz pensar e repensar estratégias de vida em sociedade, seja através de políticas públicas, de modelos de atendimento social ou de legislação contra a violência contra a mulher. O campo é vasto.

E cá estou eu, pensando com os meus botões, se é isso mesmo que eu quero. E não acreditem que o único fator aqui é a pandemia. O meu maior dilema vem, na verdade, das condições para fazer pesquisa no Brasil.

Eu preciso confessar que, desde que voltei em 2019 do meu intercâmbio em Luxemburgo, eu não fui mais a mesma. Eu descobri que existem condições melhores para se fazer pesquisa e isso muda tudo.

Eu entrei no mestrado em 2016, pouco mais de um ano depois de me formar, em 2014. Sim, eu me sentia privilegiada por poder pesquisar, trabalhar e morar no Centro de São Paulo, porque de fato isso é um privilégio em São Paulo e mesmo no Brasil. Só que eu não tinha percebido que pesquisar é um trabalho, no sentido literal da palavra, e, como um trabalho, merece dedicação integral.

Isso significa que a lógica brasileira geral de a pesquisa ser sustentada pela família do(a) pesquisador(a) ou mesmo pelo(a) próprio(a) é perversa porque trata a pesquisa como capricho.

  • "Ah, ela faz pesquisa para ficar bem no currículo";
  • "Ah, ele pesquisa pra arranjar um emprego melhor".

É como se pós-graduação fosse um título em si mesmo, sem qualquer relação com o resultado final. E isso não é verdade.

Eu fiz mestrado em direitos humanos na USP durante 3 anos e 5 meses e eu posso afirmar que foi difícil e terminar foi uma bênção. Mas fazer pós-graduação não deveria ser uma história de superação, e sim só uma coisa que a gente faz porque quer.

Isso mesmo que você leu.

Mestrado e doutorado não deveriam ser um sacrifício e dá pra ser diferente. Ninguém me contou não, eu vi e vivi com os meus próprios olhos. Eu fui bolsista de intercâmbio no mestrado em Luxemburgo e pude morar numa residência decente, com chuveiro quente e próxima da Universidade. Eu pude até mesmo viajar com o dinheiro da bolsa, olha só. E cumprir todos os créditos, entregar os trabalhos e fazer as provas.

E em nenhum momento eu fui tratada como "vagabunda" por isso. É dizer, o mestrado era só uma etapa normal no caminho da formação acadêmica.

Daí eu voltei pro Brasil e defendi a minha dissertação. Fui aprovada e decidi continuar os meus estudos e ingressar no doutorado. Mas daí eu me lembrei que bolsa de estudos é um "benefício" disputado a tapa e que, por completa ignorância e falta de vergonha na cara, o governo prioriza as ciências exatas e biológicas, como se pensar a sociedade fosse capricho.

Não só: eu tinha várias ideias para o meu projeto de doutorado e agora não sei o que fazer, como se estivesse passando por um bloqueio criativo. Só de pensar em não conseguir financiamento depois de ser eventualmente aprovada eu penso: "vou passar por tudo de novo, trabalhar e estudar, passando basicamente 13, 14 horas do meu dia em dois trabalhos, um para sustentar o outro". E ser chamada de vagabunda por isso, ainda por cima.

Eu não sei vocês, mas eu sei que podemos fazer melhor. Que educação pode não ser tratada como luxo, mas sim como investimento e, no caso da pesquisa, como um trabalho, porque é isso que ela é.

Eu não quero fazer doutorado como eu fiz o meu mestrado. Quero ter dedicação integral a um trabalho sério, que exige foco e dedicação plenos. Porém, sabendo da realidade, estou presa em escolhas que podem me levar mais uma vez a anos de dupla e tripla jornadas sem respaldo do governo.

E depois perguntam porque estamos perdendo pesquisadores(as) para o exterior. Tratar estudante e pesquisador(a) com respeito e investimento ninguém quer, né.

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Julia Drummond

Feminista, negra, advogada, mestre em Direitos Humanos pela USP. Gosto um pouco de scifi, dar pitaco em séries, aulas de dança de clipe e vídeos de gatinhos.