“Eu nunca” e os gatilhos da adolescência

Julia Drummond
3 min readJun 19, 2020

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Texto escrito originalmente em 12 de maio de 2020.

Sim, você não aguenta mais ler a palavra “gatilho”, eu sei. Mas me dá uma chance.

Decidi escrever enquanto ainda estou com o coração apertado depois de assistir à nova série da Netflix, “Eu nunca” (Never Have I Ever, no original). Me arrisco a dizer que de todas as séries adolescentes que eu já vi, e não foram poucas, essa foi uma das que mais me tocou. Vou listar 5 motivos (a internet ama uma lista, graças ao Buzzfeed).

  1. Devi, a personagem principal, não é branca nem padrão. Ela é indiana, tem buço, sobrancelhas naturais e muitas das inseguranças que eu ainda não superei (e olha que vou fazer 28 anos, o ápice da maturidade de um milennial);
  2. Devi faz muita merda. Ela largou a melhor amiga num momento difícil pra correr atrás de boy. Ela gritou com a mãe. Ela tá perdida.
  3. A masculinidade saudável do pai da Devi. Claro que há um recorte específico porque somente o conhecemos pelo olhar da filha adolescente, que o perdeu recentemente e sente muita saudade. Mas não deixa de ser lindo ver o apego ao pai antes da sua morte, numa fase em que na minha vida em particular eu não me sentia à vontade pra desabafar com adultos.
  4. Fabiola, uma das amigas de Devi, é preta e sapatão e a série não a coloca numa situação de tragédia por isso. Infelizmente o parâmetro de comparação com outras produções audiovisuais é ruim porque em geral histórias LGBTs terminam em tragédia (melhorem!), então vou dar um biscoito à Netflix por isso.
  5. A relação entre Devi e a mãe é complexa e linda. O último episódio me deixou chorando e reflexiva.

Eu vivi uma pré-adolescência complicada em termos de autoestima, com tentativas desesperadas de beijar apenas pra não ser mais uma menina preta que estuda demais pra compensar a falta de interesse afetivo das pessoas. Dramático? Talvez. Mas a adolescência é difícil num contexto em que ninguém te conta que você vale mais do que a atenção masculina ou, mesmo te contando, o resto das pessoas valoriza demais a tal da popularidade.

Popularidade na minha mente era ser magra, ter cabelo liso e ficar com meninos considerados bonitos. E quem não quer ser querida, né?

Fiquei aqui pensando com os meus botões nos tais gatilhos que essa série despertou porque eu pensei que mesmo na faculdade eu me deparei com inseguranças muito parecidas. Porque o patriarcado tá aí nos dizendo o tempo todo que o nosso valor é dado pelos meninos e que vale mais a pena lutar por isso do que estar ao lado das suas amigas quando elas precisam.

Ser uma boa amiga exige um esforço ativo mais difícil do que parece e demanda prática. Ninguém nasce cuzão, torna-se.

Ao mesmo tempo, mães se cansam, imagina quando perdem aquele apoio essencial e se vêem sozinhas com a filha em plena adolescência?

A série é linda. Ainda preciso aprofundar as minhas buscas sobre a abordagem da cultura indiana, porque né, os americanos tem um histórico de banalização da cultura alheia. Mas por enquanto, a impressão que fica é que a adolescência insegura, nua e crua, de uma menina de verdade, era o que eu realmente esperava esse tempo todo de uma série adolescente.

Que venha a segunda temporada.

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Julia Drummond

Feminista, negra, advogada, mestre em Direitos Humanos pela USP. Gosto um pouco de scifi, dar pitaco em séries, aulas de dança de clipe e vídeos de gatinhos.