A escolha de Adélia

Julia Drummond
4 min readJun 26, 2020

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[Contém spoilers]

Pathy Dejesus, 43, atriz que interpreta Adélia

Este é um texto sobre a 2ª temporada de "Coisa mais linda", série brasileira da Netflix, que estreou no último dia 19 de junho de 2020. Mas já aviso a quem está lendo que eu vou focar na Adélia.

Eu confesso que a 1ª temporada dessa série me incomodou um pouco (muito), porque eu sou levemente órfã de séries brasileiras na Netflix. E não que não haja boas produções em outras plataformas, como a Globoplay (Aruanas está na minha lista), mas a Netlflix preza, pelo menos a meu ver, por mais representatividade (como observamos em "Eu Nunca" ou "Black Mirror", por exemplo) e isso inclusive é o que me manteve na plataforma até hoje (iludida pelo black money, me julguem).

Bom, de toda forma, eu assisti a 1ª temporada até o fim porque a história me prendeu. Aquele diálogo em que a Malu era a mimadinha sem noção pra cima da Adélia, que inclusive tá num dos vídeos oficiais de divulgação, foi importante pra história, porque assim, sinceramente, nem as brancas mais progressistas que eu conheço me ofereceram sociedade 50% pra cada até hoje, em 2020 (risos).

Mas me incomodou que a história da Adélia fosse tão apagada pelas demais. O tempo inteiro eu tive a impressão de que ela era mera figura bonita numa foto "diversa", como se o papel dela fosse fazer a Malu evoluir. Aquele típico papel dado a pessoas negras, que fazem a produção parecer cool sem tirar o protagonismo branco.

A 2ª temporada consertou isso. Ela não apenas expande as locações para a favela para além de uma ou duas cenas como também introduz Ivone, a irmã de Adélia, traz mais elementos para a história de Adélia e de sua família, além de um casamento no candomblé que eu não me lembro de ter visto em nenhuma produção brasileira antes, pelo menos não do alcance da Netflix.

As relações entre as protagonistas se tornam mais complexas à medida em que elas se envolvem mais, e as microagressões ficam cada vez menos micro, mais evidentes, como quando o Pedro diz que deu "folga" para a Adélia, dona do bar, ou quando Adélia é confrontada na praia por um homem branco incomodado com a sua presença.

Entretanto, eu não poderia deixar de comentar sobre a escolha de Adélia em ficar com o Nelson.

Você pode estar pensando "ai, Júlia, que que tem, é o amor! Vai dizer que você é contra relacionamentos interraciais?".

Não sou e não é isso.

Mas esse roteiro não me desceu. A Adélia deixou pra trás o homem com quem escolheu se casar, o pai que acabou de voltar e uma comunidade na qual ela se sente parte pra viver um romance com o Nelson.

Nelson é um homem branco, filho de uma madame filha da puta e irmão de um feminicida candidato a vereador.

"Ai, tadinho, ele não é como a família".

O personagem dele foi construído pra gente acreditar nisso. Mas a vida real não é assim. A gente tá falando de um homem branco que teve uma filha negra com a mulher que foi empregada doméstica em sua casa na década de 1950. Pensa em tudo o que a Adélia abriu mão pra viver um relacionamento que tem tudo pra ela se fuder.

Sim, se fuder. Ela não tem renda, ela é negra, ela sofre racismo em todos os espaços em que está com ele, ela abriu mão de tudo o que ela tinha pra viver um romance com um cara que, na hora em que cansar, pode deixá-la sem eira nem beira.

Eu sinto muito se você é uma pessoa romântica, mas eu sou pragmática. Eu sou advogada feminista, meu bem, isso não existe. Largar tudo pra viver um romance conturbado em Paris (de onde tiraram que não tem racismo em Paris?), sem nenhuma segurança, me acende o alerta vermelho.

É incrível como as produções audiovisuais, por mais progressistas que sejam, tem muita dificuldade em questionar o amor romântico clássico. Aquele amor em que a mulher (sempre ela) larga tudo pra viver com um cara que lhe promete tudo, mas que sempre pode abrir mão sem muitas consequências, ainda mais em 1960 (que saudade que os conservadores tem dessa época, não é mesmo?).

E se ele se cansa dela em Paris, ela vai pra onde? Com que dinheiro? Com que rede de suporte?

Entendam que eu não estou tirando a agência da Adélia aqui. Ela escolheu esse caminho na história e sabe muito bem que pode dar merda. Só que é justamente por ela ser uma mulher tão foda, que abriu um bar e levantou a cabeça contra a elite carioca de merda, que eu tô irritada. Não é sobre não ter ambição, é sobre não se fuder.

E se você leu até aqui e ficou pensando "ai, mas ela vai se casar com ele e vai se garantir", nananão. Desquite não liberava as pessoas pra novos casamentos. A Lei do Divórcio só veio em 1977 e até então a única forma de dissolver o casamento era pela sua anulação ou pela morte.

Pois é, nega.

Eu não sei o que esperar da 3ª temporada, porque a 2ª me surpreendeu e agora o Augusto caiu da cobertura do Copacabana Palace (dramático, né?). Mas estou ansiosíssima pra ver o desenrolar dessa história, principalmente o que caralhos vai acontecer entre a Adélia e o Nelson.

#Ansiosa

Obs.: pesquisando as fotos pra esse texto, descobri que a Pathy Dejesus e o Alexandre Cioletti estão juntos na vida real e tiveram um filhinho no ano passado. Só tenho a desejar felicidades e que nunca nenhum homem tente ofuscar o brilho dessa atriz maravilhosa!

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Julia Drummond

Feminista, negra, advogada, mestre em Direitos Humanos pela USP. Gosto um pouco de scifi, dar pitaco em séries, aulas de dança de clipe e vídeos de gatinhos.